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Mário Sacramento e a carta dirigida ao futuro

Opinião

Virgílio António Nogueira*

Mário Sacramento é o escritor que representa o Município de Aveiro na exposição “Autores da Região de Aveiro”, que decorre até ao próximo dia 26 de dezembro na sede da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro – CIRA. O evento celebra o 10º aniversário da Rede de Bibliotecas da CIRA, constituída pelas suas 11 Bibliotecas Municipais. A mostra percorrerá depois, até 2024, todas as Bibliotecas Municipais da Região, começando pela aveirense.

Esta ocasião reforça a evocação, entre outras rememorações sobre o autor, da Carta-Testamento que o Dr. Mário Sacramento deixou para ser lida após a morte, conforme o seu pedido. Fazê-la constitui um imperativo de consciência que nos avisa para a gratidão que deve ser manifestada ao autor da epístola, ainda que postumamente, pois as suas memórias permanecem vivas e os seus valores continuam atuais.

A carta testamentária é hoje um documento de indeclinável valor na aferição da caminhada coletiva, um precioso testemunho histórico. Ainda que curto o texto é expressivo, dando conta da atividade cidadã que desenvolveu, dos princípios a que devotou a vida, revela a generosidade pela humanidade e o amor que dedicou à família. Às palavras sentidas que nos legou, em tão impressionante missiva, não podem corresponder aqueloutras de mera circunstância, que assinalariam o preito burocrático, mas falhariam a correspondência com a vocação ética, filosófica e política do Dr. Mário Sacramento.

A 7 de abril de 1967, a data da carta, a primavera já chegara ao Caramulo, à Pousada de S. Lourenço - local da redação -, trazendo consigo a invariável mensagem de que a natureza reflorescerá depois da invernia e a tepidez meteorológica sucederá ao frio, ao vento e à chuva que grassariam na serra beirã nos meses precedentes.

Em primeiro lugar, genericamente, talvez possamos encontrar na carta testamentária de Mário Sacramento a visão privilegiada de Jano, o deus que detinha o condão de um dos rostos poder experimentar a dureza do pretérito e o outro prever a esperança no futuro.

Nesse dia 7, já primaveril, por isso se supõe ter nascido ensolarado, ouvir-se-iam os amanhãs que cantam no chilreio dos pássaros aninhados nas árvores em torno da Pousada, ver-se-ia o degelo nos picos montanhosos, a derreter a neve que fixara sob si a natureza das relações sociais de subordinação e exploração e surgia então o homem novo. Nasceria o sujeito aliviado da bagagem que o agrilhoou a um regime político que não escolhera, que o tornou carne para canhão da guerra colonial que defendia interesses económicos corporativos, segregando os cidadãos desse mundo português tão vasto e longínquo. Sistema alicerçado na autocracia e na censura, condenando o povo à indigência não apenas material, mas também verbal e intelectual, visto que as palavras eram medidas, pesadas, avaliadas e proibidas pela polícia política e, com maior ambiguidade ou menor metaforização, os vocábulos interditos conduziam os autores, como o Dr. Mário Sacramento, a sevícias cruéis e à ostracização, à necessidade de exilar-se socialmente na sua terra de nascimento, por paradoxal que seja o conceito de exílio em casa.

No dia 7 de abril, de 1967, Mário Sacramento diagnostica as doenças que o afetam e debilitam fisicamente, exercício que é a tomada de consciência para abrir os parágrafos da carta testamentária. Na data sobredita revela, com a crueza do médico que se atém aos dados objetivos, a difícil situação clínica em que se encontra. Fá-lo prescindindo da autocomiseração e do medo da morte, coragem notável no ateu, porquanto descrê da vida depois da morte e do prémio do Paraíso em que os devotos de Deus acreditam. Ademais, olha para a finitude humana, para a sua própria, com o traço de humor que aligeira o “mundo de inferno”, a prisão, a tortura, a captura dos dias e dos sonhos pelas algemas do fascismo português, a instabilidade das finanças familiares, a solidão da mulher, os filhos a crescerem sem a presença do pai nos dias de aniversário, em tantas oportunidades, a mulher e os filhos ansiosos, sofrendo na dúvida: estaria ele bem, estaria ele vivo?

Médico, homem da ciência, Mário Sacramento é descendente do Iluminismo, das luzes da razão a iluminar a caminhada comum da humanidade; clama, por isso, por um socialismo “científico”, com doutrina escrita e estudada, aplicada e comprovada, apoiada na economia e na matemática, nas ciências sociais e nas exatas. Suporta o pensamento nas metodologias que revelem o desenvolvimento dos critérios que aferem a “sociedade humana” que pretendeu ajudar a instaurar. Roga aos herdeiros que por ela lutem, derrubando as classes que dividem os homens, terminando com os privilégios aristocráticos ou os provindos da prática e hierarquia dos credos. Anseia que finalize a era da exploração do homem pelo homem, colocando fim a uma civilização cuja economia assentou fortemente no esclavagismo, no servilismo ou na indignidade das condições de trabalho. A dialética marxista fazia sentido a Mário Sacramento, confiava que as etapas estabelecidas pelo economista alemão mostravam uma sociedade cuja luta diluía a distância entre o capital e o trabalho, trazia justiça na redistribuição da riqueza criada, os meios de produção estavam mais acessíveis a mais gente. Acreditava que a fase posterior, o comunismo, seria o fim da história: a consumação da vida fraterna à escala mundial, a existência da terra sem amos, denegada e tida como desnecessária a pesada bota do capitalista a esmagar o corpo magro do trabalhador.

Rogando que a carta apenas fosse aberta após a sua morte, sabia-a dirigida ao futuro. Temia que se fosse lida antes do óbito a comoção do momento de dor relativizasse a perenidade e a força vocativa e volitiva da mensagem. O testamento devia impor-se pela assertividade das palavras, das frases lidas com lucidez, ou seja, dispensando a compaixão relativa à hora do falecimento do médico-escritor.

Mário Sacramento foi um prosador brilhante, trouxe para os escritos, para os livros, o enredo dos temas que o apoquentaram, a ficção que já seria dura, era amiúde o sofrimento que conheceu na pele e no contexto cerebral a que, por simplicidade, chamamos alma. Dominando com fineza a língua portuguesa, usou a linguagem para cumprir o que lhe subjaz: o entendimento entre os seres humanos, a convivialidade em paz, com dignidade igual para todos.

A história de Liberdade, de que Aveiro se orgulha com razão, tem nas suas páginas a vida e a obra de Mário Sacramento. A Cidade junta-o na galeria de eméritos que lutaram por meios legítimos e que deram a saúde e a vida para que Portugal atrevesse os passos em frente no sentido de construir um país mais livre, mais justo, mais próspero e mais solidário.

Não é possível regressar às décadas do século passado e libertar Mário Sacramento das duras condições em que penou como preso político. Não se pode devolver-lhe o tempo roubado à família que tanto adorava ou o que foi subtraído à profissão que exercia com inegável magistério. No entanto, poderemos trabalhar para cumprir o pedido que nos fez: o de fazermos um mundo melhor! Mesmo que o sonho de Mário Sacramento se tenha revelado, enquanto prática política, incapaz de dar a liberdade de expressão e de associação aos cidadãos, mesmo que os exemplos dos países marxistas tenham reconhecidamente pervertido a vontade do povo e suprimido a democracia, mesmo que tenha fracassado o modelo económico planeado cientificamente, mesmo assim há muito universo para melhorar para que a comunidade beneficie da equidade entre os seus membros.

Os extremismos ideológicos continuam a boicotar a democracia representativa e o parlamentarismo plural, enfraquecem as instituições de poder para as desmoralizar junto das populações, mantendo viva as heranças dos antigos regimes autocráticos, desses que tolhem consciências, sonhos e vidas e que tão bem, “na carne e no espírito”, Mário Sacramento conheceu.

É missão dos aveirenses, igualmente a de todos os homens de boa-vontade, fazerem o bem, o que está certo, para deixarmos repousar na paz da imensidão cósmica o distinto médico e escritor, desobrigando-o desse pronunciado regresso a este palco e aos dramas que procuramos aliviar sempre que se labuta em favor da Educação, da Saúde, do Apoio Social, da Cultura, do Ambiente, da Economia, sempre que olhamos para a juventude e ambicionamos que as gerações mais novas tenham planeta para tomarem as suas opções e que não necessitem de nos chamar cá.

É com sincera estima que se presta homenagem a Mário Sacramento, somos devedores do comprometimento que assumiu com a comunidade, com o país, tudo o que fez em prol do fim do regime ditatorial em Portugal. Mais se agradece o ralhete eivado de suave ironia, o “voltar cá!”: pode bem ser necessário, caso não melhoremos o mundo como ficou como o seu desejo. Vamos, pois, na exposição organizada pela Rede de Bibliotecas da CIRA lembrar a exclamação de Mário Sacramento, a que inscrita na sua Carta Testamentária nos impele a transformar a realidade para que o mundo seja melhor!

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