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A privatização da existência

Opinião

Andar a pé é o ato elementar da mobilidade. Quase nascemos com ele ainda que, mesmo após o nascimento e primeiros meses de vida, é o gatinhar o modo de deslocação pela casa. Quando já começamos a olhar o mundo, a tentar articular sons que serão letras para, no futuro, escreverem palavras e ainda mais à frente construir frases que os vão identificar perante todos, começamos a andar a pé, para não mais parar. Ou talvez não.

Há, nos primeiros meses de vida, uma espécie de adaptação rápida que viaja de bebé para criança. Como diz Darwin, em “A Origem das Espécies”, fomos evoluindo, por adaptação, até às formas fisionómicas que hoje nos identificam. Ficam, porém, no mínimo, algumas dúvidas sobre a inteligência (sapiens) da adaptação fordiana que levou o “Homo Sapiens” para o “Homo Automobilis” e para o empobrecimento da vida na cidade que o uso excessivo do automóvel causou.

Criou-se, com o veículo, um artefacto que envolveu o corpo e lhe deu novos contornos e imagem, produziu novos valores e enalteceu o homem e a mulher enquanto individualidade. As cidades alargaram estradas no seu interior e passaram a ter a preponderância da ocupação no espaço público: quer quando se deslocam, quer quando estacionados.

Paralelamente, não obstante a cápsula em que passamos a mover-nos na cidade, para nos adaptarmos às circunstância, projetámos também uma imagem de possuirmos um corpo capaz da maior elegância, produtor de vaidades múltiplas e um carro de marca na garagem do prédio que se habita.

Parece, com frequência, não sabermos lidar com o nosso corpo e nem sempre o habitamos com gosto e orgulho, talvez porque estamos dele reféns e irremediavelmente condenados a viver no seu interior. “A Pele que Habito”, filme de Pedro Almodôvar, disso dá nota levando ao confronto entre o criador e a criação da mudança corporal. Neste contexto, face às dificuldades que a cidade produz, sentámo-nos e habitamos os nossos artefactos ou próteses das quais, a mais comum, é o automóvel.

Envergonhamo-nos do nosso corpo se somos gordos, baixos, velhos ou deficientes. Por vezes até se formos de outra cor de pele, credo ou de tomarmos opções sexuais ainda minoritárias. A dimensão ideológica do espaço público está sempre presente como, por exemplo, nos cartazes demonstrativos de obras públicas ou de vendas de apartamentos. Se bem repararmos, as pessoas 3D lá desenhadas raiam a perfeição da forma humana, como indicador da eloquência do governante ou de bem-estar supremo da casa a comprar. Os corpos estão a sofrer de especulação na forma e a chegar ao preço inflacionado de uma Barbie ou Ken.

Há agora, porém, novas formas de confronto ilusão-desilusão, fornecida pelas fotografias trabalhadas, produzidas e colocadas nas redes sociais em que o programa nos adelgaça o que supostamente temos a mais. Seria de pensar que tal é produzido para a admiração de terceiros no espaço público da cidade, como outrora. Porém, pelo contrário, agora toda esta produção pessoal é destinada a ser gerida no espaço privado.

Na verdade, passamos a ser privados em toda a nossa dimensão, usos e costumes. Alegremente privatizamos a nossa existência que, como comunidades urbanas que somos, deveriamos ter um equilíbrio entre o público e o privado. Neste sentido, rejeitamos colocar o corpo na rua e até impedimos os outros de o fazer. Hoje, até no espaço público somos privados: na rua, dentro do carro, na praça, na esplanada pagando mais por um copo de água do que por um manancial de informação de um jornal.

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Privatizamos a existência. De casa para a garagem, para o automóvel, para o trabalho, para o automóvel, para a garagem, para casa. Ao fim de semana, circulamos por ruas privadas, devidamente climatizadas e asséticas, entre fachadas exclusivamente de vidro, compostas por lojas geminadas à exaustão de um centro comercial da periferia ou do hipermercado encastrado num edifício abarracado de grandes dimensões. Construção apenas destinada a ser habitada pelo interior, o privado, e desfigurada pelo exterior, a paisagem urbana pública.

Talvez por isto não se construam jardins urbanos há mais de 60 anos, nas cidades portuguesas.

Entretanto, a vitalidade da rua e a proximidade do desejo se torna longínqua pelo definhar do comércio local.

Morremos mais tarde, mas adoecemos mais cedo e não havia necessidade. Não prevenimos a doença porque a política pública está muito encostada à privada. Caminhar na cidade não dá lucro e não nos contentamos, enquanto sociedade, em reduzir despesa. O lucro é privado, a redução da despesa é pública. Obesidade, sedentarismo e, consequentemente, problemas do foro respiratório ou cardio-vascular, estão a ser pensados nos laboratórios farmacêuticos e não, em local próprio: no espaço público, nas redes pedonais e ciciáveis, nos contínuos verdes e azuis. 

Também já não somos nacionais de uma nação, nem de muitas, somos multinacionais sem país. As bandeiras desfraldadas nos edifícios públicos e equipamentos, em todos os países, foram cerzidas na China e fazem com que os hinos nacionais sejam música para cantar no início dos jogos da seleção, com bancadas cheias de clientes do Continente, com compras acima de trinta euros.

Caminhar pela cidade é um ato de liberdade e libertário, mesmo que apenas de casa para o trabalho e regresso. O caminho que se caminha, preserva os cafés, as livrarias, o cinema de rua. A menos que a opção tirar o café com uma cápsula na máquina de casa ou do trabalho, se tateie as palavras a partir de um ecrã sem manusear os livros, ou se tente imaginar cinema a partir do modelo repetitivo de séries de canais televisivos próprios. Entretanto, a utilização do rico vocabulário que possuímos tem vindo a reduzir dramaticamente. E com a diluição do uso das palavras, diminuímo-nos a nós próprios.

Vivemos dentro de paradoxos pasmados. Faz-se algo e depois fingimos surpresa com o resultado. Por exemplo, estamos numa fila de automóveis a praguejar contra a imobilidade a que estamos sujeitos sem pensar que fazemos parte, estamos lá, somos um entre os outros que a causam.

Mais grave, é conversarmos sobre o quanto era belo o tempo da infância em que íamos a pé para a escola, enquanto ignoramos que foi a nossa geração que tornou o caminho das escolas impraticável, pelo modo como privilegiamos o automóvel individual e conferimos, com as nossas velocidades de atropelo, a insegurança inibidora dessa autonomia tão importante na formação dos jovens. Salvador Dali, terá dito, um dia, por aqui e por acolá, que originalidade é o que está na origem. Poderá ser, a partir desta frase, que se possam reinventar os dias e se lhes dê um novo sentido comum. 

Por tudo isto, descer ao espaço público, colocar o corpo na rua, assumir a cidade como espaço comum das nossas vidas, caminhar por entre ruas, ruelas e vielas, é uma atitude de enorme expressão política, das maiores que a contemporaneidade nos coloca. Assumirmos a nossa dimensão pública, sermos ao mesmo tempo, nós e o outro. Colocar o corpo no espaço público é a ousadia que confronta e resiste à nossa existência exclusivamente privada. 

1 Comentário(s)

jose vidal
29 dez, 2023

excelente reflexão a ser tomada em consideração pelos autarcas deste país que tomam medidas de imediato dando asas aos desejos do indvidualismo, em vez de arriscarem perder votos, na defesa do espaco público, para todos

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