O mítico veleiro Argus, testemunho vivo da pesca do bacalhau à linha, vai ser recuperado e transformado em museu. A câmara municipal de Ílhavo e a Pascoal & Filhos, empresa que, há 12 anos, adquiriu o navio, impedindo que o mesmo fosse desmantelado, celebraram um protocolo que prevê a doação da embarcação ao município ilhavense.
Segundo o acordo hoje formalizado, esta será uma cedência sem qualquer contrapartida, realizada ao abrigo da política de mecenato cultural da empresa. A transferência de propriedade do navio acontecerá assim que o município ilhavense consiga garantir, no contexto do próximo quadro financiamento europeu, o suporte financeiro necessário às intervenções de recuperação e reabilitação da embarcação. A autarquia liderada por Fernando Caçoilo calcula um investimento de cerca de 4 milhões de euros.
Com a esta intervenção, contudo, o Argus não voltará a navegar. “Para colocar este navio a navegar, o projeto custaria três ou quatro vezes mais. Não há dinheiro para isso”, reitera o presidente.
O avançado estado de degradação e “a ausência de escala que permita um retorno do investimento”, bem como os posteriores encargos inerentes à manutenção de uma embarcação navegável, acabaram por fazer com que se abandonasse a ideia “utópica” de uma recuperação que permitisse a navegabilidade do navio.
O caminho passa, então, por transformar a embarcação num equipamento museológico a ser instalado, em seco, no Jardim Oudinot, na Gafanha da Nazaré, à semelhança do que acontece em Greenwich (Londres, Reino Unido) com o Cutty Sark.
Para Aníbal Paião, administrador da Pascoal & Filhos, este é “um dia particularmente feliz”. Depois da “salvação in extremis do Argus, em Aruba”, em 2009, a empresa vê agora honrado o seu “compromisso de preservação deste património náutico”, bem como “a necessária homenagem à Frota Branca e às gentes ilhavenses que participaram na pesca do bacalhau à linha nos terríveis anos da Segunda Guerra Mundial”.
Uma vez recuperado, o Argus juntar-se-á, assim, à rede de equipamentos de promoção e divulgação da "maritimidade ilhavense": o Museu Marítimo de Ílhavo e o seu Aquário de Bacalhaus, o Navio-Museu Santo André, também no Jardim Oudinot, ou o praticamente concluído Centro para a Valorização da Religiosidade do Mar, na parte nascente do antigo quartel dos bombeiros de Ílhavo.
O Argus é um lugre de quatro mastros construído em 1939, na Holanda. É o “irmão mais novo” (e uma versão tecnicamente mais desenvolvida) dos icónicos “navios-gémeos” Creoula – que, desde os anos de 1980, está sob a alçada da Marinha Portuguesa – e Santa Maria Manuela – recuperado pela Pascoal e vendido, em 2016, ao grupo Jerónimo Martins. Dos três, o Argus é, provavelmente, o mais conhecido, muito por conta do livro “A Campanha do Argus”, de Alan Villiers, um clássico da literatura marítima mundial, escrito a bordo deste navio, assim como o documentário com o mesmo nome ou ainda o álbum de fotografias que o repórter australiano compôs ao acompanhar a campanha de 1950 aos bancos de pesca da Terra Nova.
Durante a sua vida ativa ao serviço da pesca do bacalhau, o Argus teve sempre comandantes ilhavenses. Todavia, depois de mais de três décadas como um dos protagonistas daquela epopeia de superação humana que ficou conhecida como faina maior, em 1970, o Argus deixou de pescar.
Quatro anos depois, viria a ser adquirido por uma empresa canadiana e, mais tarde, por uma norte-americana – a Windjammer – que o levaria para as Caraíbas, transformando-o em embarcação turística. Nas águas quentes do Caribe, o Argus passaria a ser conhecido como Polynesia II.
Em 2009, o navio volta a Portugal pelas mãos da Pascoal & Filhos. Numa altura em que já parecia condenado ao desmantelamento, e perante aquilo que Aníbal Paião apelida de “uma total apatia nacional”, a empresa ilhavense decide comprar o navio em hasta pública. Desde então, tem aguardado no Cais dos Bacalhoeiros, na Gafanha da Nazaré, na esperança de que o tempo traga as condições necessárias para que a sua requalificação se concretize. Com a assinatura deste protocolo de doação ao município de Ílhavo, a espera pode estar prestes a chegar ao fim.
*Fotos:Afonso Ré Lau