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A Ria de Aveiro, 100 anos depois d’Os Pescadores, de Raúl Brandão

Património

Ao longo dos anos, foram vários os autores que, nas narrativas das suas viagens por território nacional, deixaram relatos sobre a região de Aveiro, as gentes da Ria e os barcos que nela navegam. Em “Portugal” (1950), por exemplo, Miguel Torga apresenta a costa portuguesa como “uma província à parte”, feita “de areia e espuma” e que, de norte a sul, é “sempre Atlântico, praia e pescadores”. Torga retrata um litoral que é “salino e moliceiro a meio”, onde há “marnotos a arquitetar brancura em Aveiro” e no qual se vê “transformar em húmus as dunas da Gafanha”. Trinta anos depois, é José Saramago que se aventura num périplo pelo país do qual resultaria o livro “Viagem a Portugal”. Apesar de o itinerário programado ter ditado uma passagem por território aveirense em pleno inverno, nem por isso o escritor deixa de encontrar encanto na “solidão” da Ria, nas “salinas desertas”, nos “moliceiros encalhados” e nos “mercantéis ausentes”. Tudo isto, claro, a acrescentar à “luz perfeita” da “grande laguna e a sua silenciosa respiração azul”. Saramago constata, extasiado, que “nenhumas palavras serão capazes de dizer o que uma gota de água é, quanto menos este corpo vivo que liga a terra e o mar como um coração”. Para o autor, na sua passagem pela região, “a ria, sob a luz do Sol, foi um presente real”.

Como estes, outros escritores – portugueses e estrangeiros – por cá terão passado e outros registos – em prosa ou em verso, uns mais afamados, outros mais obscuros – existirão. Não haverá, no entanto, mais belo relato do espetáculo da Ria, mais deslumbrada descrição da sua luz e humidade e mais inspirado retrato daqueles que nela habitam e dela tiram o seu sustento como o que Raúl Brandão apresenta em “Os Pescadores”. Nesta obra, o jornalista e escritor portuense reúne um conjunto de crónicas sobre a costa portuguesa e as comunidades piscatórias de norte a sul do país. E, como não podia deixar de ser, algumas páginas são dedicadas às paisagens e às gentes da Ria de Aveiro.

No centenário da viagem que trouxe o autor à região, a Aveiro Mag revisita os locais e as comunidades descritas na obra, em busca da Ria de Aveiro que Raúl Brandão imortalizou, bem como daquela que, 100 anos depois, veio tomar o seu lugar.

 

“Os pescadores da Murtosa são os únicos a quem se pode aplicar este nome”

Primeira paragem: cais da Béstida, na freguesia do Bunheiro, Murtosa.Pousamos os olhos sobre o canal prateado e vemos, no horizonte, a silhueta escura e recortada da Torreira. Deste lado, no cais, há bateiras de todas as cores e um barco moliceiro descansa, pousado no lodo, aguardando a próxima maré. Não falta vento e maresia para temperar o fim de tarde, mas a verdadeira azáfama vem da taberna da D. Alcina onde as enguias – fritas ou de caldeirada – são o petisco-rei.

Estamos no coração da Ria e, à nossa espera, temos o historiador Marco Pereira. Se não o conhecêssemos, o folhear cuidadoso de um velhinho exemplar de “Os Pescadores” denunciá-lo-ia rapidamente. “Esta é uma terceira edição, de 1924”, informa-nos. “O livro deve ter vendido bem. Se a primeira edição é de 1923 e, no ano seguinte, já ia na terceira...”, reflete o historiador, confessando continuar “à procura de uma primeira edição”. Apesar de “Os Pescadores” ter sido publicado em 1923, de acordo com os registos do próprio Raúl Brandão, o autor terá passado pela Ria de Aveiro no mês de julho e nos primeiros dias de agosto do ano anterior – 1922 –, isto é, há precisamente 100 anos.

 

 

Também Marco Pereira concorda que, dos “vários escritores importantes” que passaram pela região, foi Raúl Brandão o que deixou “a descrição mais alongada, mais bonita e apaixonada” da Ria. Para o historiador, “esta obra é, necessariamente, uma referência. É a menção mais icónica para quem procura um roteiro turístico escrito”.

Ressalvando o facto de “Os Pescadores” ser “mais literatura do que, propriamente, história”, Marco sublinha “a imagem bucólica da essência do que era a vida na Ria” que o autor consegue transmitir. Trata-se de uma espécie de reportagem, ainda que com um discurso marcadamente impressionista e repleto de demoradas descrições da luz, das cores e dos reflexos da Ria, imagens nítidas daquilo que o autor terá visto e sentido, bem como das pessoas que terá encontrado pelo caminho. Raúl Brandão capta o âmago da população “filha da ria”, gente que admira, imita e elogia. Impressiona-se com os seus hábitos, gaba-lhes o desembaraço e relata-lhes rotinas de sacrifício vividas sobre um cenário de rara beleza.

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Para o escritor, “os pescadores da Murtosa são os únicos a quem se pode aplicar este nome” e Marco não podia estar mais de acordo: “Eles não são só pescadores enquanto trabalham. São-no de manhã, à tarde, à noite. Vivem entrosados na Ria. Devem ter guelras e tudo!” Além de lhes garantir o ganha-pão, a Ria é faina e casa, o barco, veículo e leito, e a pesca, o desígnio de uma vida inteira.

“Salvaguardando meia-dúzia de exceções, há 100 anos, toda a gente da Murtosa trabalhava na Ria”, avança o historiador, acrescentando que “chegou a haver revoltas populares contra a Capitania – a mais séria, em 1913 – em que a população saiu à rua, causou distúrbios e for preciso vir a cavalaria de Aveiro para reprimir os pescadores”. “A capitania decidiu impor épocas de defeso que, apesar de já existirem à época, não eram lá muito respeitadas. Objetivamente, tem toda a razão, mas conduziu muito mal as coisas. Como é que se explica a milhares de pessoas que vivem da pesca, que não sabem fazer outra coisa e não têm outra alternativa – ou trabalham, ou passam fome – que vão estar quatro meses impedidos de trabalhar, sem ganhar, sem alimentar os filhos? É complicado...”, concede Marco Pereira. “De algum modo, para satisfazer aquela gente revoltada, foi preciso inventar umas obras aí nuns cais para empregar as pessoas. Se não, era a fome negra”. O historiador explica que, mais tarde, esta ausência de alternativas de sustento ajudaria a explicar a intensidade da emigração que se verificou na Murtosa, com muita gente a ir para os Estados Unidos da América, já depois de outra vaga de emigração para o Brasil, no início do século XX. “Hoje em dia, não haverá ninguém na Murtosa que possa dizer que não tem, pelo menos, um familiar na América. Há mais murtoseiros na América do que na Murtosa. São os filhos e os netos das pessoas que Raúl Brandão viu na Ria”.

 

 

Autor da “Monografia da Murtosa”, Marco Pereira é um apaixonado pela história da sua terra. Natural de Pardilhó, em Estarreja, mas com raízes no Bunheiro, há vários anos que investiga as raízes daquelas gentes, numa incessante procura pela identidade da região e, porque não dizê-lo, da sua própria identidade. “Sou neto e bisneto de moliceiros, mas o meu pai já não fez vida na Ria. Trabalhou na indústria química, em Estarreja. Apesar de não ter sido educado na Ria – o meu avô moliceiro morreu antes de eu nascer, não tive a experiência pessoal e íntima de ter alguém que me levasse pela mão para o barco – sempre tive a noção de que ela faz parte da minha genética e da herança cultural da minha família”.

A história da família de Marco é exemplo de uma tendência mais generalizada. Um século volvido desde a visita de Raúl Brandão, “há muito menos gente a viver da Ria”. Alguma pesca artesanal mantém-se, ainda que em menor escala e mais modernizada; moliceiros, esses, contam-se pelos dedos. Se, há 100 anos, era comum encontrar a laguna “cheia de deles”, como se pode ler numa das passagens d’Os Pescadores, hoje em dia, esta embarcação típica “é coisa para turista ver”, entende Marco Pereira. “E ainda bem que o é”, ressalva, “caso contrário, depois de vários anos de agonia, teria morrido”. “Para aquelas pessoas que, há 100 anos, tinham barcos moliceiros, jamais lhes passaria pela cabeça a utilização que hoje lhes damos”, acredita o investigador. “Para eles, era um barco bonito, no qual investiam e sobre o qual tinham uma certa vaidade, mas era um barco de trabalho, para andar na Ria a raspar o moliço ou, quando muito, para andar ao junco pelas praias”. “Agora, o contexto é completamente diferente. Quem utiliza o moliceiro, fá-lo, principalmente, nos canais urbanos da cidade de Aveiro, bem longe do contexto rural e de Ria selvagem onde ele realmente existia”, explica.

De igual forma, é importante referir-se que, naquele tempo, “a melhor via de comunicação era a Ria”. “Por água, as pessoas chegavam a todo o lado e conheciam todas as localidades da laguna”, atesta Marco Pereira. Era “a autoestrada” do antigamente. Nessa conjuntura, “Pardilhó, Bunheiro e Murtosa tinham as melhores acessibilidades” e “quem estava geograficamente isolado eram as localidades às quais a Ria não chegava”. Uma vez mais, com um século de desenvolvimento em cima, o panorama passou a ser bem diferente. As pessoas deixaram de se deslocar pela Ria para passarem a deslocar-se por estrada e as principais vias de comunicação não mais passam pela Murtosa. Atualmente, “ninguém passa na Murtosa a não ser que venha propositadamente à Murtosa”, aponta o historiador.

Uma coisa parece certa: se, cem anos depois, Raúl Brandão regressasse à Ria de Aveiro, há alguns aspetos que, dificilmente, passariam ao lado do seu olhar atento. Desde logo, atira Marco Pereira, “a questão do assoreamento”. “A última operação de dragagem pecou pelo atraso e, afinal, acabou por não ser concretizada da forma desejável. Ficou aquém das expectativas. O problema de assoreamento da Ria continua a dificultar a generalidade das atividades náuticas e creio que isso não passaria despercebido a Raúl Brandão”.

 

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