Para o escritor, “os pescadores da Murtosa são os únicos a quem se pode aplicar este nome” e Marco não podia estar mais de acordo: “Eles não são só pescadores enquanto trabalham. São-no de manhã, à tarde, à noite. Vivem entrosados na Ria. Devem ter guelras e tudo!” Além de lhes garantir o ganha-pão, a Ria é faina e casa, o barco, veículo e leito, e a pesca, o desígnio de uma vida inteira.
“Salvaguardando meia-dúzia de exceções, há 100 anos, toda a gente da Murtosa trabalhava na Ria”, avança o historiador, acrescentando que “chegou a haver revoltas populares contra a Capitania – a mais séria, em 1913 – em que a população saiu à rua, causou distúrbios e for preciso vir a cavalaria de Aveiro para reprimir os pescadores”. “A capitania decidiu impor épocas de defeso que, apesar de já existirem à época, não eram lá muito respeitadas. Objetivamente, tem toda a razão, mas conduziu muito mal as coisas. Como é que se explica a milhares de pessoas que vivem da pesca, que não sabem fazer outra coisa e não têm outra alternativa – ou trabalham, ou passam fome – que vão estar quatro meses impedidos de trabalhar, sem ganhar, sem alimentar os filhos? É complicado...”, concede Marco Pereira. “De algum modo, para satisfazer aquela gente revoltada, foi preciso inventar umas obras aí nuns cais para empregar as pessoas. Se não, era a fome negra”. O historiador explica que, mais tarde, esta ausência de alternativas de sustento ajudaria a explicar a intensidade da emigração que se verificou na Murtosa, com muita gente a ir para os Estados Unidos da América, já depois de outra vaga de emigração para o Brasil, no início do século XX. “Hoje em dia, não haverá ninguém na Murtosa que possa dizer que não tem, pelo menos, um familiar na América. Há mais murtoseiros na América do que na Murtosa. São os filhos e os netos das pessoas que Raúl Brandão viu na Ria”.
Autor da “Monografia da Murtosa”, Marco Pereira é um apaixonado pela história da sua terra. Natural de Pardilhó, em Estarreja, mas com raízes no Bunheiro, há vários anos que investiga as raízes daquelas gentes, numa incessante procura pela identidade da região e, porque não dizê-lo, da sua própria identidade. “Sou neto e bisneto de moliceiros, mas o meu pai já não fez vida na Ria. Trabalhou na indústria química, em Estarreja. Apesar de não ter sido educado na Ria – o meu avô moliceiro morreu antes de eu nascer, não tive a experiência pessoal e íntima de ter alguém que me levasse pela mão para o barco – sempre tive a noção de que ela faz parte da minha genética e da herança cultural da minha família”.
A história da família de Marco é exemplo de uma tendência mais generalizada. Um século volvido desde a visita de Raúl Brandão, “há muito menos gente a viver da Ria”. Alguma pesca artesanal mantém-se, ainda que em menor escala e mais modernizada; moliceiros, esses, contam-se pelos dedos. Se, há 100 anos, era comum encontrar a laguna “cheia de deles”, como se pode ler numa das passagens d’Os Pescadores, hoje em dia, esta embarcação típica “é coisa para turista ver”, entende Marco Pereira. “E ainda bem que o é”, ressalva, “caso contrário, depois de vários anos de agonia, teria morrido”. “Para aquelas pessoas que, há 100 anos, tinham barcos moliceiros, jamais lhes passaria pela cabeça a utilização que hoje lhes damos”, acredita o investigador. “Para eles, era um barco bonito, no qual investiam e sobre o qual tinham uma certa vaidade, mas era um barco de trabalho, para andar na Ria a raspar o moliço ou, quando muito, para andar ao junco pelas praias”. “Agora, o contexto é completamente diferente. Quem utiliza o moliceiro, fá-lo, principalmente, nos canais urbanos da cidade de Aveiro, bem longe do contexto rural e de Ria selvagem onde ele realmente existia”, explica.
De igual forma, é importante referir-se que, naquele tempo, “a melhor via de comunicação era a Ria”. “Por água, as pessoas chegavam a todo o lado e conheciam todas as localidades da laguna”, atesta Marco Pereira. Era “a autoestrada” do antigamente. Nessa conjuntura, “Pardilhó, Bunheiro e Murtosa tinham as melhores acessibilidades” e “quem estava geograficamente isolado eram as localidades às quais a Ria não chegava”. Uma vez mais, com um século de desenvolvimento em cima, o panorama passou a ser bem diferente. As pessoas deixaram de se deslocar pela Ria para passarem a deslocar-se por estrada e as principais vias de comunicação não mais passam pela Murtosa. Atualmente, “ninguém passa na Murtosa a não ser que venha propositadamente à Murtosa”, aponta o historiador.
Uma coisa parece certa: se, cem anos depois, Raúl Brandão regressasse à Ria de Aveiro, há alguns aspetos que, dificilmente, passariam ao lado do seu olhar atento. Desde logo, atira Marco Pereira, “a questão do assoreamento”. “A última operação de dragagem pecou pelo atraso e, afinal, acabou por não ser concretizada da forma desejável. Ficou aquém das expectativas. O problema de assoreamento da Ria continua a dificultar a generalidade das atividades náuticas e creio que isso não passaria despercebido a Raúl Brandão”.