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Jorge Cruz: “Não sei se um dia não acabo por voltar à Barra"

Artes

Até ao final da década de 1990, havia um som grave e arrastado que bocejava aos navios e embalava as madrugadas de nevoeiro de quem tentava repousar nas redondezas da barra. É, precisamente, esta memória sonora – a inconfundível ronca do farol – que inaugura o disco “Barra 90”, do músico aveirense Jorge Cruz.

Para este álbum, editado no outono de 2011, Jorge foi ao baú das memórias, reuniu ideias antigas, revisitou lugares de infância, recuperou registos em cassete e alinhou um conjunto de canções que prestam homenagem à terra que o viu crescer como homem e à década que o viu nascer como músico. Mais de dez anos depois, a Aveiro Mag propôs-lhe um exercício semelhante – desta vez, não na forma de canções, mas de uma conversa – e o músico não descurou o desafio.

Jorge Cruz, criador do power-trio aveirense Superego e do projeto de “roque popular” Diabo na Cruz, nasceu na antiga casa de saúde de Santa Joana, na freguesia da Vera Cruz, em Aveiro, mas foi na Praia da Barra, na Gafanha da Nazaré, que passou os primeiros anos de vida. Uma infância “inocente” e “descomplicada”, “vivida de frente para Ria” e marcada pelas pescarias com o pai e pelos passeios de bicicleta junto ao mar. Ao recordar esses anos fundadores, vêm-lhe à memória as vezes em que se abeirava da Ria para olhar a ilha, ao longe, e em que via a luz espelhada nas águas; as gaivotas que não arredavam asa das traineiras e a maré que desvendava campos de lodo pontilhado onde sabia esconderem-se navalhas e berbigões. Lembra igualmente, e de forma especial, “o silêncio” e a quietude que por ali se sentiam, principalmente, no inverno e na primavera.

Naquela altura, a Barra ainda era um lugar isolado. Se, por um lado, com a nova ponte sobre o canal, já “tinha uma ocupação sazonal muito forte”, por outro, todos os anos, o mês de setembro trazia “uma certa melancolia”. A mais agitada e vibrante quinzena do ano terminava e a calma parecia impor-se de um dia para o outro. “Os primeiros dias de setembro eram, normalmente, dias de vento e neblina. Desapareciam as pessoas todas! À imagem da música que gosto de fazer, era uma época que tinha o seu toque de tristeza, mas que também sugeria um alento novo”, recorda o músico, a propósito desses “tempos marcantes”, na sua praia-natal.

Para Jorge, a Praia da Barra é terra de raízes, identidade e pertença. É o chão arenoso e salgado que associa à família, desde logo, ao “avô Cruz”, natural de Azurva, que, a certa altura da sua vida, deixou o trabalho na padaria junto ao farol, por um emprego nos estaleiros de São Jacinto que lhe permitiu construir uma vida nova, mais desafogada; o mesmo avô que, mais tarde, já com a sua própria empresa, viria a ter “um papel importante na construção da povoação e dos arruamentos da Barra”, numa entrega apaixonada àquela comunidade e àquelas gentes, que Jorge ainda gostava de ver reconhecida.

Apesar de não ter músicos na família – o pai dava uns toques na guitarra e terá chegado a compor “uma canção sobre um cavalinho” para os filhos, mas nunca tocou profissionalmente –, por volta dos 9 anos de idade, Jorge já sonhava vir a tornar-se músico. Se os cantautores portugueses da década anterior – Zeca Afonso, Fausto, José Mário Branco ou Sérgio Godinho – tinham sido banda sonora da sua infância, em plena década de oitenta do século XX, eram os telediscos de Michael Jackson, Boy George, Bruce Springsteen, George Michael, Madonna ou Prince que faziam despertar o seu entusiasmo pelo mundo da música. Jorge acompanhava escrupulosamente as alterações ao top dos artistas mais ouvidos, seguia canais satélite dedicados à música e entretinha-se a desenhar capas de discos.

De certa forma, foi também a música que o ajudou a combater a solidão, quando se mudou para a província de Benguela, em Angola, aos 10 anos. O pai aceitara uma proposta de trabalho no país africano e toda a família viajara com o objetivo de por lá ficar, pelo menos, dois anos. Jorge acabaria por voltar para Portugal, com a irmã, mais cedo do que o esperado – os pais receavam que o percurso escolar dos filhos ficasse prejudicado, dadas as limitações que o ensino angolano apresentava à época –, todavia, aquela “infância idílica, tão feliz e protegida”, que vivera na Barra, já havia dado lugar a uma adolescência de ruturas e transformações, desde a separação dos pais, a várias alterações de morada. Perante a aparente inevitabilidade de tão constantes mudanças, Jorge não teve outro remédio senão aprender a adaptar-se, e foi na música – sempre nela – que encontrou o seu “escape”, o seu “lugar seguro”.

Num período em que viveu em Almada, entre 1989 e 1991, conheceu Rui Jorge Abreu, o amigo com quem aprendeu a tocar guitarra e com quem compôs as suas primeiras canções. De regresso a Aveiro, torna-se cliente habitual do Estúdio 1, uma loja de discos no centro comercial Oita. “Era o meu sítio preferido em Aveiro. Eu já era mobília da casa. Passava a vida a folhear os vinis e a conversar com o pessoal que trabalhava lá - o Rui e o Vítor. Eu era um miúdo chato, curioso e obcecado por música, mas eles sempre me trataram com carinho e paciência”, relata. Terá sido por esta altura que se cruzou com Alexandre Mano, aprendiz de baixista, na companhia do qual criou a sua primeira banda – Os Últimos Dias – “conjunto musical do liceu José Estêvão” que daria o primeiro concerto nas instalações do IPDJ, em Aveiro, junto às antigas piscinas do Beira-Mar, assumindo a primeira parte de um espetáculo dos também aveirenses Chip Chip Zan Zan.

Os Últimos Dias não resistiriam ao fim do secundário, mas é da sua base que nascem os Superego, o trio com que Jorge Cruz edita “Quem Concebeu o Mundo Não Lia Romances” (1998) e “A Lenda da Irresponsabilidade do Poeta” (2001), este último, acompanhado de um manifesto a favor da música portuguesa cantada em português que não terá sido bem acolhido pela crítica e pelos pares. Pelo meio, editaria também o seu primeiro disco a solo sob o nome “O Pequeno Aquiles” (1999).

Na vida de Jorge, só houve uma paixão que, por breves instantes, conseguiu rivalizar com a música: o desporto. Fã acérrimo de Michael Jordan, Jorge jogou basquetebol no G.D. Gafanha e no S.C. Beira-Mar e, ainda hoje, tem por hábito acompanhar a modalidade. “Desde que o Steph Curry apareceu nos Warriors, fiquei novamente fã. Sigo a NBA religiosamente. É um dos pontos altos da minha rotina”. Por tudo isto, não seria de estranhar que, quando chegou a altura de escolher que caminho seguir no ensino superior, tivesse optado pela vertente desportiva. No entanto, foi a psicologia que levou a melhor. E “foi uma boa opção”, assegura. “Nos primeiros anos, andei um bocadinho absorto, mas a fase final do curso foi muito interessante. Cheguei a dar consultas, no centro de saúde de Carvalhido, no Porto, e ainda trabalhei como bolseiro de investigação para a faculdade. à medida que o curso se aproximava do fim, ia-me apercebendo de que aquele não podia ser um plano B. Eu só ia conseguir fazer uma coisa e, assim sendo, a opção recairia sobre a música. É como gostares de alguém e ponderares casar com outra pessoa. Não faças isso!”.

Entre o fim dos Superego e o momento em que, já depois de se mudar para Lisboa, “quis o destino que me cruzasse com um grupo de pessoas que pensavam de forma parecida com a minha” – o coletivo Flor Caveira –, passou por um período longo e conturbado que costuma comparar a uma “travessia no deserto”. Os concertos eram escassos, as editoras intrometidas, a crítica implacável e a imprensa desinteressada. “E como eu estava a tentar arranjar uma solução para a minha vida, muitas vezes, não fiz 100 por cento o que desejava. Cedi a pressões, deixei que fosse a editora a escolher as capas, gravei canções que não devia ter gravado”, lamenta. Recorde-se que são desta altura os álbuns “Sede” (2004) e “Poeira” (2007), que gravou a solo.

Trabalhar na produção dos discos dos Golpes, de João Só e os Abandonados ou de João Coração, bem como lidar de perto com Manuel Fúria, Tiago Guillul ou Samuel Úria, incentivou Jorge a retomar uma vontade antiga: a de criar uma banda de rock que fosse buscar inspiração à música tradicional portuguesa. Em 2008, em conjunto com o baixista Bernardo Barata e o baterista João Pinheiro, nasciam os Diabo na Cruz, grupo ao qual se juntariam, mais tarde, B Fachada, na viola braguesa, e João Gil, nos teclados. Com os Diabo na Cruz, Jorge editaria “Virou!” (2009), “Roque Popular” (2012), “Diabo na Cruz” (2014) e “Lebre” (2018), percorrendo o país de lés a lés, em concertos e outras apresentações públicas.

Depois de vários anos a morar em Lisboa, Jorge Cruz deixou a azáfama retumbante da capital e escolheu viver no campo, uma paisagem bem diferente daquela que conhecera, tantos anos antes, na Praia da Barra. Na aldeia, o nevoeiro não é visita tão assídua, o ar não sabe a sal e o vento raramente soprará com a fúria atlântica que, por cá, lhe conhecemos. Ainda assim, Jorge consegue identificar vários pontos em comum entre as duas localidades: “a calma, o isolamento”, por exemplo.

Aos 46 anos, o músico admite que, um dia, pode regressar à Barra. “Houve épocas em que tive uma relação menos bem resolvida e, durante muito tempo, a possibilidade de voltar não esteve em cima da mesa. Mas cheguei a um ponto da minha vida em que é importante para mim associar tudo aquilo que sou a tudo aquilo que fui” e, ainda que prefira um clima mais quente, “voltar à Barra não está, de maneira nenhuma, fora de questão”. “Pelo contrário, o meu entusiasmo para com a região tem aumentado. O meu filho não nasceu aí, mas eu sou aquele pai que faz questão de lhe mostrar os sítios por onde passou e as memórias que viveu. A ele, não lhe diz grande coisa, mas, para mim, é importante passar-lhe esses testemunhos”, vinca. “Não sei se um dia não acabo por voltar à Barra”.

Recentemente, Jorge Cruz utilizou as plataformas digitais para divulgar os trabalhos de mema., Perpétua e O Marta. “Identifico-me imenso com as lutas de quem vive fora dos grandes centros e tenta fazer a sua música chegar às pessoas. Gosto de apoiar, animar, incentivar porque sei o que é essa luta, essa viagem, sei que é preciso muita perseverança e vontade”, constata, assumindo-se “muito feliz” pelo caminho que estes artistas aveirenses têm trilhado. Jorge recorda que, nos Superego, “as fotografias promocionais que enviávamos para os jornais eram tiradas na estação com placas enormes por trás de nós onde se lia ‘AVEIRO’”. “Há qualquer coisa diferente de sermos daqui. Só quem é de cá é que pode compreender o que é fazer rock na antiga casa dos meus avós, de luvas, com um nevoeiro dos diabos lá fora e o cheiro a maresia... é muito diferente de tocar na Avenida de Roma”, garante.

A verdade é que, desde os anos de 1990, a música portuguesa percorreu um longo caminho naquilo que é a afirmação da sua identidade e da língua portuguesa como veículo de expressão, uma evolução que Jorge Cruz reconhece e saúda. “Durante muito tempo estava zangado com o caminho que as coisas estavam a tomar. Sentia que estávamos muito longe de nós próprios. Acreditava numa outra maneira de ser em que falávamos a nossa própria língua e sobre a nossa própria vida e sentia-me frustrado porque, no nosso país, queríamos sempre ser iguais aos outros. Só os outros é que eram iguais a eles próprios. Felizmente, com o tempo, as coisas foram mudando. Agora, para o bem e para o mal, somos cada vez mais como nós próprios”.

Em 2019, Jorge Cruz viu-se obrigado a deixar os palcos depois de lhe ter sido diagnosticado tinitus severo com perda de audição, um zumbido constante provocado por trauma acústico, isto é, pela exposição prolongada a sons muito altos. “Era um estilo de vida fisicamente muito exigente e o meu corpo começou a dar sinais de não estar a aguentar a pressão e o esforço ao qual estava sujeito”, explica o músico. “Aquilo que acaba por me acontecer com os ouvidos resulta de uma sobrecarga que já vem de trás o desgaste, a falta de qualidade no sono, a alimentação... a saúde obrigou-me a parar e, com isso, fiquei reduzido ao meu papel de escritor de canções”, conta.

Apesar de a paixão pela música ter aparecido primeiro, Jorge sempre soube que era menos talentoso nessa área do que na escrita. “Escrever sempre foi algo mais fácil, mais espontâneo. Sempre me distinguiu mais do que a minha voz ou a minha capacidade para tocar um instrumento. Ao escrever sentia-me empoderado”.

Depois de já ter assinado temas como “Rosa Sangue”, para a voz de Marisa Liz, dos Amor Electro, “Dia de Folga”, para Ana Moura, ou “Leve como uma pena”, para o disco a solo de Ana Bacalhau, é na escrita de canções que Jorge Cruz mais tem trabalhado nos últimos tempos. “Há tempos, fiz uma playlist a que chamei “Vida de Alfaiate” como que em resposta à “Vida de Estrada” ”, partilha Jorge, comparando o ato de escrever canções para outros ao ofício de quem veste alguém: há que tirar medidas, perceber o que assenta bem, o que faz sentido e, depois, gizar, talhar, coser e dar a provar. “É um exercício de que gosto bastante”, admite, alertando, no entanto, que o mesmo não lhe basta. “Tenho de continuar a escrever músicas para mim. E, a seu tempo, talvez cheguem a um ponto de maturidade que faça com que me apeteça mostrá-las”, antecipa.

*Fotos: Joana Linda, Ricardo Quaresma e Vera Marmelo

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